domingo, 2 de fevereiro de 2020

HISTÓRIA DA ORTOGRAFIA PORTUGUESA - Prof. David Gonçalves Lavrado


A história da ortografia da língua portuguesa compreende três períodos
 - FONÉTICO, das origens medievais (século XII) até meados do século XVI; - PSEUDO-ETIMOLÓGICO, de meados do século XVI até os primeiros anos do século XX;- HISTÓRICO-CIENTÍFICO, de 1904, data da publicação da Ortografia Nacional de Gonçalves Viana, até nossos dias.

PERÍODO FONÉTICO
A grafia da fase arcaica da língua portuguesa representava exclusivamente os sons da fala, inexistindo a preocupação de escrever-se consoante a origem das palavras. Assim, por exemplo, escrevia-se omem, honrra, liões, etc. Contudo, a grafia não era, por falta de sistematização, absolutamente fonética, porquanto havia palavras com mais de uma grafia, indecisões, emprego de um mesmo sinal com valores diversos: haver/aver; nõ/nom/non; hidade/idade/ydade; homem/omem/ome. O h, por exemplo, podia indicar tonicidade da vogal: he (é); a existência de hiato: sahida (sa-í-da), trahedor(traidor; o som i : sabha (sabia); e, às vezes, era usado sem função definida: hua (uma)Conquanto não houvesse um padrão uniforme na escrita, a tendência era indiscutivelmente fonética: Escrevia-se não para a vista, mas para o ouvido.

PERÍODO PSEUDO-ETIMOLÓGICO
Os estudos humanísticos no século XVI levaram os eruditos a procurarem sistematizar a grafia portuguesa, aproximando-a da latina. A grafia etimológica nessa época consistia em conservar as letras de origem das palavras, mesmo que não tivessem valor fonético algum. São incorporados ao nosso léxico com aspecto gráfico do Latim não só os vocábulos novos mas também os que já possuíam formas vulgares resultantes da evolução do Latim para o Português. Assim, por exemplo, ocorreu com os vocábulos história, digno, benigno, maligno, os quais, segundo a pronúncia antiga, eram grafados estória, dino, indino, benino, malinoNão sendo usado o método da pesquisa etimológica, por desconhecimento na época, a grafia proposta continha complicações inúteis, porquanto estava cabalmente desvinculada dos princípios de evolução do idioma. As palavras de procedência grega apresentavam, então, grafias pretensiosas: PH: philosophia, nympha; TH: theatro; RH: rheumatismo; CH (velar): chimica, technico; Y: hydrophobia, nympha. Os eruditos, influenciados  pelos modelos latinos que procuravam imitar, grafavam approximar, abbade, bocca, secco etc. por ignorarem que, na evolução para a nossa língua, essas consoantes se simplificaram.
Conquanto tivesse a pretensão de ser etimológica, tal grafia estava eivada de equívocos e de formas absurdas, sem respaldo etimológico: hontem ( ad noctem>ontem); pecego (persicu>pêssego);geito (iactu>jeito); Nictheroy (grafia inconcebível uma vez que o nome locativo  Niterói é de origem indígena). 
O eminente filólogo e foneticista português Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, a quem se devem as bases da simplificação ortográfica fixadas em Portugal em 1911, assim se manifestou sobre esse sistema: Estou de há muito convencido, e várias vezes o tenho dito pela imprensa, de que a denominada ortografia etimológica é uma superstição herdada, um erro científico, filho do pedantismo que na época da ressurreição dos estudos clássicos, a que se chamou Renascimento, assoberbou os deslumbrados adoradores da antigüidade clássica e das letras romanas e gregas, e pôde vingar, porque a leitura e a conseqüente instrução das classes pensadoras e dirigentes só eram possíveis a pequeno círculo de pessoas, cujos ditames se aceitavam quase sem protesto.

PERÍODO HISTÓRICO-CIENTÍFICO
A Lingüística em Portugal, com Adolfo Coelho, constituiu-se como ciência a partir de 1868, passando em decorrência, a ser seguros e confiáveis os resultados das investigações. O mestre Gonçalves Viana foi o primeiro a aplicar, sistematizadamente, à grafia da língua portuguesa o tratamento histórico-comparativo. Tomando por base a fonética histórica, isto é, considerando as normas a que se submeteram os sons latinos na passagem para o português (por isso o seu sistema é realmente etimológico e não aquele que, indevidamente, durante tanto tempo se utilizou desse nome), Gonçalves Viana publicou, em 1904, a sua notabilíssima Ortografia Nacional, ponto de partida de tudo quanto se fez posteriormente. Graças à grande repercussão da obra de Gonçalves Viana, O Governo português constituiu, em 1911, uma comissão para estudar as bases da reforma ortográfica.
Em 1916, O Governo oficializava a nova ortografia, praticamente toda fundamentada nos estudos de Gonçalves Viana, e, em 1931, foi ela estendida ao Brasil por acordo firmado entre a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras, com aprovação de ambos os governos.
A Constituição Brasileira de 1934, todavia, determinou a volta do sistema ortográfico anterior, denominado usual ou misto.
O golpe de Estado de 1937 restabeleceu o sistema simplificado de 1931, porém lhe acrescentou novas regras sobre a acentuação gráfica, passando a divergir, a partir de então, Brasil e Portugal em matéria ortográfica.
Tornou-se necessário novo entendimento entre os dois países para a unificação ortográfica, tendo-se realizado nova convenção luso-brasileira que revigorou o Acordo de 1931. A Academia Brasileira de Letras, aceitando unanimemente, em 29/01/1942, a sugestão do então Ministro da Educação e Saúde do Brasil, aprovou, na sessão de 12 de agosto de 1943, as instruções para a organização do vocabulário ortográfico da língua portuguesa, que tiveram por base o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, edição de 1940.
Objetivando dirimir algumas divergências na interpretação de algumas regras, reuniram-se, em Lisboa, de julho a outubro de 1945, delegados das duas Academias, tendo resultado daí as Conclusões Complementares ao Acordo de 1931.
Em 1947, a Academia Brasileira de Letras publicou o Vocabulário Ortográfico Resumido da Língua Portuguesa, organizado com base no que foi deliberado pela Conferência Interamericana de Lisboa de 1945 e aprovado pelo Decreto-Lei nº 8.286 de 5/12/45.
Conseqüentemente, passou a  haver, no Brasil, dualidade de sistemas, acarretando grande confusão nos espíritos, até que o Congresso Brasileiro optou pela adoção do sistema ortográfico de 1943, instituindo, em caráter obrigatório, o seu uso, conforme a Lei nº 2.623 de 21/10/1955.
Em 18 de dezembro de 1971, a Lei nº 5.765 aprova a abolição do sinal diacrítico nos seguintes casos:
1ª- do trema nos hiatos átonos (anteriormente já era facultativo: saüdar/saudar);
2ª - do acento circunflexo diferencial na letra  e e na letra  o da sílaba tônica das palavras homógrafas de outras em que essas vogais são abertas, à exceção do vocábulo pôde (3ª pessoa do singular do pretérito perfeito simples do indicativo) por oposição a  pode (3ª pessoa do singular do presente do indicativo); cumpre esclarecer que o acento diferencial (circunflexo ou agudo, consoante o timbre da vogal tônica) continua sendo usado na letra da sílaba tônica  das palavras homógrafas de outras inacentuadas: pôr (verbo) cf por (preposição); pára (3ª pessoa do singular do indicativo do verbo parar) cf para preposição; pêlo, pêlos (substantivos) pélo, pélas, péla (pessoas do singular do presente do indicativo do verbo pelar) cf pelo, pelos, pela, pelas (combinação da preposição arcaica per com o artigo definido masculino ou feminino do singular ou plural, conforme o caso) etc.
3a - do acento circunflexo ou do grave com que se assinala a sílaba subtônica dos vocábulos derivados em que figura o sufixo mente ou sufixos iniciados  por z: sòmente>somente; sòzinho>sozinho; instantâneamente>instantaneamente; bebêzinho> bebezinho.
Em 1998, a Academia Brasileira de Letras lança a 2a edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa enriquecido com a inclusão, de acordo com o 1º e o 2º item das Instruções do Formulário Ortográfico para a organização do VOLP do Acordo de 1943, de numerosos brasileirismos consagrados pelo uso e de estrangeirismos e neologismos de uso corrente no Brasil e necessários à língua literária.
Alguns empréstimos, a par da grafia original, já se apresentam ajustados ao que preceitua o item 12 das supraditas instruções: Todos os vocábulos devem ser escritos e acentuados graficamente de acordo com a ortoépia usual brasileira(...) Assim estão registados slide/eslaide; shampoo/xampu; ski/esqui; sheik/xeque; record/recorde; dossier/dossiê; copydesk/copidesque etc.
No caso de empréstimos com dupla grafia, deve-se preferir a vernácula.
Em 16 de dezembro de 1990, em Lisboa, foi assinado um acordo ortográfico pela Academia das Ciências de Lisboa, Academia Brasileira de Letras e delegações de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
O Decreto Legislativo nº 54 de 18/4/1995, subscrito pelo presidente do Senado, acadêmico José Sarney, aprova o texto desse Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa:
Artigo 1º.  É aprovado o texto do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa, em 16 de dezembro de 1990.
Parágrafo único.  São sujeitos à apreciação do Congresso Nacional quaisquer atos que impliquem revisão do referido Acordo, bem como quaisquer atos que, nos termos do artigo 49, I, da Constituição Federal, acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.
Artigo 2º  Este Decreto Legislativo entra em vigor na data de sua publicação.
Esse acordo ortográfico, porém, ainda não está em vigor na unanimidade das sete nações da comunidade lusófona (Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe), o que devera ter ocorrido em 1º de janeiro de 1994, porque alguns desses Estados ainda não depositaram os instrumentos de ratificação junto do Governo da República Portuguesa, como prevê o seu artigo 3º : O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor em 1º de janeiro de 1994, após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Portuguesa.
Para não confundir os usuários do idioma português, convém que comentário algum se deva fazer sobre as instruções do Anexo I desse acordo, o qual visa à elaboração de um vocabulário ortográfico comum, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas.
Continuar-se-á, portanto, a escrever no Brasil de conformidade com o Sistema Ortográfico de 1943, aprovado pela Lei nº 2.623 de 21/10/1955 e modificado pela Lei nº 5.765 de 18/12/1971, e com o PVOLP editado pela Academia Brasileira de Letras em 1998.

BIBLIOGRAFIA

1.       Budin, J & Elia, Sílvio - Compêndio de Língua Portuguesa e de Literatura - 1º volume - São Paulo: Companhia Editora Nacional, 7ª edição, 1960.
2.       Lima, Rocha - Gramática Normativa da Língua Portuguesa - Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia. Editores, 3ª edição, 1959.
3.       Coutinho, Ismael Lima - Pontos de Gramática Histórica - Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 3ª edição, 1954.
4.       Bueno, Francisco da Silveira (org.) - Dicionário Escolar da Língua Portuguesa - Rio de Janeiro: FENAME/MEC, 6ª edição, 1969.
5.       Academia Brasileira de Letras - Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa  - Rio de Janeiro: A Academia, 2a, edição, 1998.

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