quinta-feira, 23 de julho de 2009

Rádio Rural

No Brasil, a primeira emissora educativa entra no ar em 15 de agosto de 1958, em Natal, inspirada no modelo Sutatenza de escolas radiofônicas, para atender adultos e jovens. Com autorização especial do presidente da República, Juscelino Kubitschek, a emissora de Educação Rural integra-se ao Sistema de Assistência Rural (SAR) da Diocese de Natal, liderado pelo bispo auxiliar D. Eugênio Salles.

O Rio Grande do Norte vive um momento de intensa mobilização política e sindical, na cidade e no campo, com o envolvimento de partidos políticos, da Igreja, Juventude Agrária Católica (JAC), Federação dos Trabalhadores Rurais do Rio Grande do Norte, Federação dos Pequenos Proprietários de Terras, Ligas Camponesas, Juventude Universitária Católica (JUC) e a União Nacional dos Estudantes, através do Movimento de Cultura Popular.

É neste cenário que surgem projetos de alfabetização rural, debates sobre os direitos dos trabalhadores e campanhas de reforma agrária. A educação popular é uma bandeira empunhada pelas mais variadas tendências ideológicas. Implantam-se programas de educação básica como “De Pés no Chão Também se Aprende a Ler”, patrocinada pela Secretaria de Educação da Prefeitura de Natal na gestão socialista de Djalma Maranhão (1960-1964) , o projeto do governador Aluísio Alves (UDN) no município de Angicos, coordenado por um jovem educador pernambucano chamado Paulo Freire, e as escolas radiofônicas da Diocese de Natal, que têm dois momentos. Começam com uma proposta que prioriza a educação instrucional e depois, com a criação do Movimento de Educação de Base, assumem um viés marcadamente politizado.

Força social tradicionalmente conservadora, os católicos compareciam diluídos nas diversas agremiações que constituíam os instrumentos de dominação política das classes dominantes (...) O deslocamento político de parte dos católicos organizados e da própria instituição (hierarquia) se deu inicialmente através da Ação Católica Brasileira (ACB) e se exprimiu, em um segundo momento, através de uma força política própria, o movimento de Ação Popular(...). A AP se integra com um dos protagonistas das lutas populaeres que se desenvolviam no país.

Um transmissor de 1 kwatt, da Philips do Brasil, garante o alcance da Rádio Rural a 20 municípios, num raio de 150 quilômetros em torno da capital potiguar. Com o apoio de entidades católicas alemãs e da Universidade de Leuven, na Bélgica, a diocese compra 400 aparelhos de recepção cativa produzidos pela subsidiária holandesa e os distribui em centros sociais, escolas e capelas espalhados por cidades e vilarejos do Rio Grande do Norte. Nos vilarejos em que não havia luz elétrica, os aparelhos de rádio eram movidos a bateria.

As aulas eram dadas no fim da tarde (entre 18h e 19) e os monitores, recrutados na comunidade a partir de critérios que levavam em conta o espírito de liderança e a vocação pedagógica, recebiam treinamento no Centro de Formação de Lideranças de Ponta Negra, em Natal.

O economista Otomar Lopes Cardoso, primeiro diretor-superintendente da Rádio Rural, lembra que a emissora chegou a ter 25 funcionários, entre locutores, programadores e técnicos. Durante o dia, a emissora mantinha uma programação voltada para jornalismo e entretenimento, veiculando comerciais nos intervalos, o que viabilizava os custos dos projetos educativos.

“A rádio enfatizava muito o jornalismo, com noticiários de hora em hora. Isso foi uma inovação para Natal na época”, conta Otomar. Outro aspecto importante é que a entrada no ar da Rádio Rural, sob o controle da diocese, rompia o hábito vigente de conceder freqüências apenas a políticos locais.

A direção da emissora ficava a cargo do bispo Eugênio Salles, que supervisionava a programação e o conteúdo das aulas da escola radiofônica. Ao microfone sua participação limitava-se à celebração da missa, aos domingos pela manhã.
Em 1963, o governo federal concedeu mais duas freqüências à Igreja católica no Rio Grande do Norte, para expandir o projeto de escolas radiofônicas: a de Mossoró (990 kh), inaugurada em abril, e a de Caicó (840kh), que foi ao ar pela primeira vez a 1º de maio. Os dois transmissores, de 1 kwatt, foram adquiridos com recursos da Alemanha Ocidental.

As emissoras de Educação Rural no interior também transmitiam aulas no fim da tarde, mas com produção e conteúdo próprios a cargo do Movimento de Educação de Base. O técnico de manutenção Moacir Maurício Dantas, 62 anos, funcionário da emissora de Caicó desde a inauguração, recorda que as primeiras aulas começaram três meses depois com aparelhos receptores que vieram emprestados de Natal. Como se tratava de audiência cativa e as emissoras transmitiam em freqüências diferentes, ele pessoalmente teve que alterar a posição do filtro para que os alunos sintonizassem a emissora da região.

A atuação do Movimento de Educação de Base, subordinado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), marcou o desempenho das escolas radiofônicas em quase todos os estados do Nordeste (Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas e Sergipe). Criado em 1961 e com forte orientação marxista, o MEB desenvolveu uma doutrina que ligava a educação ao trabalho de conscientização política, sob o argumento de que a verdadeira educação deveria voltar-se para a liberdade e esta liberdade só poderia existir com o pleno exercício de direitos de cidadão.
Osmar Fávero, um dos organizadores do MEB no Nordeste, diz que uma das iniciativas do movimento foi substituir as cartilhas de alfabetização que estavam desvinculadas da realidade do trabalhador rural e das periferias das capitais.

O material didático constitui uma referência especial. Se as equipes locais progressivamente aprofundavam, selecionavam melhor e procuravam globalizar os conteúdos, assim como exploravam mais os recursos de dramatização, dos diálogos e mesmo da narração, a cartilha e os livros de leitura disponíveis bloqueavam essas iniciativas...Para as aulas, eram utilizados os folhetos Ler e Saber, respectivamente primeiro e segundo guias de leitura, e o Caderno de Aritmética, pouco mais do quem uma tabuada, preparados pelo Serviço Nacional de Educação de Adultos do MEC para a Campanha Nacional de Educa’;cão de Adultos, ainda nos anos 1950...Era evidente a inadequação desses textos à realidade dos alunos e aos objetivos do MEB. Além dos problemas de método, que se diziam bastante sérios no caso da Radiocartilha, davam eles aos adolescentes e adulto o mesmo tratamento dado às crianças, quase sempre projetando valores e imagens da vida urbana.

O maior obstáculo ao projeto político do MEB concentrava-se na Rádio Rural de Natal, onde a orientação do bispo Eugênio Salles era a de amenizar a politização da escola radiofônica. Um dos exemplos é o da cartilha Viver é lutar – livro de leitura para adultos, cuja primeira lição apresenta o seguinte texto

Eu vivo e luto.
Pedro vive e luta.
O povo vive e luta.
Eu, Pedro e o povo vivemos.
Eu, Pedro e o povo lutamos.
Lutamos para viver.
Viver é lutar.

Ao lado, a foto de um trabalhador rural. Embaixo, em letras maiúsculas, repete-se a última frase:

VIVER É LUTAR

Os exercícios na página seguinte pediam
1º) Risque as vogais da frase “Eu, Pedro e o povo lutamos"
2º) Complete as letras que faltam na seguinte frase: “O P VO IVE E LU A”.
3º) Risque as consoantes encontradas na 6ª frase da lição.

A cartilha foi aplicada regularmente nas aulas da Rádio Rural de Mossoró, Caicó e de emissoras de outros estados nordestinos, menos na emissora de Natal. Impressa na gráfica Vitória, no Rio de Janeiro, chegou a ter uma edição apreendida pela Polícia, a mando do governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, que a acusou de propaganda comunista.

A efervescência política, característica dos anos 60, serve como pano de fundo dos projetos de educação radiofônica em todo o continente, mobilizando vastos recursos financeiros e grandes contingentes de jovens educadores. As diversas instituições, países e correntes políticas envolvidas participaram de uma verdadeira batalha por corações e mentes. De um lado havia os que acreditavam tomar parte numa nova cruzada, não mais contra os mouros, mas contra o “perigo vermelho”. Do outro lado, imbuídos do espírito de que educação e liberdade são irmãs siamesas da consciência social, jovens educadores confiavam que a elevação do nível de instrução das populações de baixa renda, dentro das propostas de desenvolvimento social originárias do pós-guerra, era condição essencial para a transformação social.

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