Enquanto as emissoras comunistas transmitiam todas as arengas revolucionárias, a Rádio Pio XII transmitia, inocentemente, os lançamentos musicais, programas humorísticos e novelas.
Os anos 50 marcam um momento de ebulição política na Bolívia. A Revolução de 1952 nacionaliza a exploração do minério, institui a reforma agrária e desperta os trabalhadores das minas de estanho para a necessidade de ganhar voz própria. Os sindicatos, de forte inspiração marxista, reclamam a concessão de freqüências de rádio. Em resposta, o governo do Movimento Nacionalista Revolucionário autoriza o funcionamento da Voz de los Mineros, no acampamento Siglo XX, em Potosi, e da Rádio 21 de Diciembre, em Catavi. Em apenas quatro anos chega a 19 o número de pequenas emissoras (de 200 a 300 watts) nas mãos dos sindicatos e associações, quase todas mantidas com o desconto de um dia de salário dos operários sindicalizados. A Bolívia foi o primeiro país sul-americano a conceder freqüências de rádio a sindicatos operários.
É neste cenário que, em 1959, um grupo de missionários oblatos da ordem de Maria Imaculada, do Canadá, decide instalar a Rádio Pio XII num edifício ao lado do conturbado acampamento Siglo XX, que concentra os trabalhadores das minas de Simon Patiño, em Potosi. Com 2 kwatts de potência, suficiente para cobrir os distritos mineiros da região, a emissora chega com infra-estrutura e produção de nível profissional. Monta estúdios modernos, compra equipamentos sofisticados e contrata os melhores roteiristas, produtores e locutores. Quem não é da região recebe a oferta de morar no próprio prédio da emissora.
Sob o pretexto de que era preciso “erradicar a silicose, o alcoolismo e o comunismo”, a Pio XII mesclava uma proposta contra-insurgente e uma propaganda de nível profissional, com fartos recursos econômicos. Começaram a transmitir futebol com unidades móveis, promovem concursos, tocam canções populares e produzem programas em espanhol e quéchua, um dos principais idiomas indígenas na Bolívia, junto com o aimara.
Lopez Vigil compara o prédio da Pio XII a um monastério radiofônico. “Era um conflito radiofônico e ideológico que se dava também por agressões e insultos. Alguns mineiros mais exaltados chegavam a atirar bananas de dinamite no edifício. Uma vez o diretor da Pio XII atropelou um vira-lata e o editorial da Voz dos Mineiros no dia seguinte atacava: ‘caminhonete burguesa assassina cachorro proletário’. Os mineiros fizeram um boneco parecido com o diretor e o queimaram em praça pública”, conta Lopez Vigil.
A batalha hertziana colocava os mineiros e a Igreja em lados opostos. Num canto do dial, uma voz panfletária, dura, beligerante, que cansava o ouvinte com longos discursos políticos, embora do interesse do ouvinte mantenedor. Do outro lado, uma rádio alegre, com produtores criativos que falavam para a mulher e para o trabalhador nos momentos de folga. Com o tempo os próprios sindicalistas passaram a ouvir a emissora dos missionários.
Numa carta aos superiores no Canadá, um missionário se orgulha dos resultados, em fins de 1960: “Temos aqui um exemplo da influência que a rádio pode exercer...(a propósito da realização de uma convenção sindical que, segundo os oblatos, tinha influência comunista). Evidentemente, nossa rádio não iria enfrentar os poderosos ditadores desta assembléia. Fizemos algo melhor: enquanto as emissoras comunistas transmitiam todas as arengas revolucionárias, a Rádio PioXII transmitia, inocentemente, os lançamentos musicais, programas humorísticos, novelas (...) Desta maneira, com meios tão pacíficos como estes, conseguimos fazer fracassar a famosa conferência intersindical de novembro de 1960. E pudemos boicotar também a visita dos russos ao (acampamento) Siglo XX”.
A Voz dos Mineiros não se dava por vencida e emitia chamados constantes aos ouvintes. Num deles, o dirigente Frederico Escobar alertava:
“Camaradas operários. Se há um Deus que considera os homens terá que compreender que a maioria se compõe de homens pobres. Lamentavelmente, nos querem fazer entender as coisas de forma diferente. Porque os sentimentos religiosos existem para pedir à Virgem de Copacabana que desapareça com a miséria. Eu estou seguro de que Karl Marx, lá no céu ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo, tem mais influência com ele do que os mercenários que tomaram conta da Igreja (...) Não somos inimigos da religião (...) Por que haveríamos de sê-lo? Mas a religião se tem prestado a dividir nosso povo. Uns dizem que os padres fazem falta para nos ensinar a rezar. Já rezamos muito. E os pobres, quanto mais rezam, mais pobres ficam”.
Para Lopez Vigil, a batalha radiofônica na Bolívia não se deu entre a Voz da América e as emissoras locais, mas entre as rádios dos sindicatos e os canais educativos mantidos pela Igreja católica. “Radiofonicamente esta batalha foi vencida pela Rádio Pio XII, mas politicamente quem venceu foram os mineiros, porque depois do primeiro diretor, que era muito intolerante, vieram novos diretores, mais progressistas, que se revelaram sensíveis à luta dos mineiros”.
Pouco a pouco eles abrem as portas do monastério aos trabalhadores, adotam um projeto de alfabetização semelhante ao da Sutatenza e convertem a rádio numa aliada do movimento mineiro. Identificados com a Teologia da Libertação e as idéias de Paulo Freire, os padres transformam a emissora num canal aberto às reivindicações dos mineiros. Em 1984, por ocasião de seu jubileu de prata, a Pio XII recebeu a máxima condecoração do Sindicato dos Mineiros por serviços prestados à comunidade de Potosi. Hoje o diretor da rádio é um missionário oblato que trabalhou nas minas.
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