quarta-feira, 16 de julho de 2008

Povoado isolado

O povoado era isolado geograficamente das metrópoles e muito próximo de uma grande mata com uma infinidade de espécies animais. Portanto, o cotidiano de seus habitantes era muito influenciado pelos programas populares da televisão e das AM’s, pela religião e pelos discursos dos seus políticos. As pessoas, muito simples, discutiam na praça central as soluções que o governo lhes havia prometido na época das eleições, como a falta de estrutura viária e industrial, a ampliação do hospital e dos postos de saúde, construção de uma nova escola, transporte coletivo de qualidade, água encanada, esgoto e diversas outras benfeitorias. Os debates e as discussões eram tão acalorados que era comum os correligionários do prefeito saírem aos socos e pontapés com os correligionários do presidente da Câmara Municipal, ferrenho opositor do prefeito e aspirante ao seu cargo. As brigas chegavam até às páginas do jornal local e alimentavam os debates do dia seguinte.
O programa de Carlos Carrasco, um jornalista que anunciava as últimas notícias “do mundo cão” e abusava dos palavrões, estava entre os mais assistidos pela população pobre. Gordo e com duas olheiras bem grandes, tinha o modo de falar dos apresentadores do gênero. Para dar ênfase aos seus discursos, quebrava móveis e microfones no estúdio. Cheio de ambições políticas, o apresentador distribuía muitos prêmios, como tv’s, geladeiras, fogões, dinheiro etc. Não tomava partido nem do prefeito e muito menos do presidente da Câmara, na verdade, incitava um contra o outro, alimentando as brigas na praça central.
Haviam também aqueles que não davam importância para esse tipo de programa e ficavam sentados na varanda, conversando com os amigos, a família ou namorando. Dormiam cedo, pois tinham que trabalhar no dia seguinte. Mas, como também havia muito desemprego, alguns preferiam ficar na rua até tarde, pilhando ou bebendo. Esse era o povoado e seu povo, que gradativamente se transformava em cidade.
Sérgio Antônio, um caboclo simples, sério, religioso e com bom caráter, conseguiu fazer boa parte de seus estudos ali mesmo no povoado, numa escola de ensino médio. Seus amigos, tão simples quanto ele, tinham hábitos e costumes que a televisão não havia conseguido remover e mantinham a herança cultural deixada pelos seus ancestrais, como brincadeiras de roda, estórias de assombração, cantigas e etc.
Tonho, um menino feio e bem magrinho, nasceu pelas mãos de uma parteira, a Maria das Dores, uma senhora negra e muito bonita que fazia todos os partos do povoado. Os mais velhos diziam que ela aprendeu o ofício, ainda nova, com a sua avó, uma escrava senegalesa.
Ele já chegou causando transtorno e fazendo bagunça. Foi batizado na igreja de São Jorge, que ele considera até hoje seu padrinho.
Com o passar do tempo, se transformou em um religioso fervoroso, rezava todos os dias para o santo guerreiro e para a mãe pretinha para que o afastassem do caminho da mal. Ia à missa de domingo e participava de todas as festas religiosas.
Numa noite, teve um sonho que o deixou muito perturbado. Estava andando a cavalo, perto das matas do povoado, quando se deparou com uma imensa sombra que cobria todas as árvores. “Como o dia pode se transformar em noite?”, pensou. Tirou de seu peito um crucifixo e um escapulário de São Jorge e começou a rezar. Então, percebeu que a sombra, que se aproximava, era a projeção de algo gigantesco que fazia um barulho ensurdecedor. Desceu do cavalo e se ajoelhou com medo. Na sua frente, apareceu um monstro grande, quadrado e preto. Era tão alto que devia ter mais de 100 metros de altura. Junto dele estavam outros monstros não tão grandes. Tinham asas e voavam, fazendo um zumbido ainda maior que o primeiro. Tonho montou em seu cavalo e se escondeu no meio da mata. O monstro se aproximou do povoado e começou a comer, com sua boca mecânica, árvores, pedras, rios, animais e imensos pedaços de terra. Seus olhos estavam próximos a uma antena que ficava no centro de sua cabeça e se movimentava de um lado para outro, vasculhando o local em busca de “comida”. Antônio acordou assustado no momento em que o monstro ia devorá-lo.
Seria um presságio?
De manhã, ao abrir o jornal local, leu que uma grande mineradora estrangeira se instalaria na cidade, cuja população ganharia mais empregos e progresso. A matéria, estampada na capa do jornal, trazia a foto do prefeito e do presidente da Câmara abraçados ao empresário estrangeiro da mineradora WYK, que, segundo os políticos, transformaria finalmente o povoado numa cidade. O prefeito estava orgulhoso e o presidente da Câmara se gabava de ter negociado a vinda da WYK. Diziam que o povoado iria aumentar a arrecadação de impostos e exaltavam a empreitada da mineradora. Havia um anúncio vistoso no estilo anúncio-reportagem, feito pela mineradora WYK, que ocupava cinco páginas e nas quais explicava que aquele local foi escolhido por causa de seus recursos naturais. Para exportar ferro, alumínio e cobre a mais de 20 países, ela ocuparia um espaço equivalente a mil campos de futebol e geraria mais de dez mil empregos diretos e indiretos. Esta unidade seria a maior indústria desse tipo da América Latina.
Impressionado, Tonho se surpreendeu com um estranho e pequeno anúncio de apenas três linhas, publicado na seção de classificados:

CUIDADO
O monstro que está chegando pode nos levar à destruição.

O que poderia ser aquilo? Lembrou-se de seu sonho com o monstro gigante que comia tudo ao redor. Guardou o jornal num armário e foi até a praça central conversar.
Quando chegou na praça, Tonho viu um caminhão de som, com as placas da WYK, distribuindo doces para as crianças e brindes para os mais velhos. Eram chaveiros, bonés e camisetas, onde todos se aglomeravam e se acotovelavam para catar os brindes. Uns pulando em cima dos outros para ver quem pegava mais brindes. Assustado, Tonho viu bastante gente discutindo sobre a nova empresa que iria se instalar no povoado. Nas rodinhas, alguns exaltavam a façanha da empresa, que viria a ser a maior da América Latina e geraria muitos empregos e daria total infra-estrutura para o povoado. Outros, com medo, sabiam que aquilo poderia ser perigoso e uma mineradora daquele porte poderia destruir muitas coisas e mudar radicalmente a rotina do povoado. Tonho, que só escutava e não entrava nas rodas de discussão, só pensava em seu sonho e no anúncio do jornal, até que se lembrou do que leu e começou acreditar que aquele pesadelo, em que um monstro o tentava comer, poderia estar muito bem relacionado com aquela mineradora e com o caminhão que jogava as coisas na rua e fazia as pessoas se acotovelarem para pegar brindes. Voltou correndo para casa, chamou pelo pai, lhe contou o sonho e a vinda da empresa, admitindo de pés juntos que a mineradora iria destruir toda a mata em volta. Seu pai, acreditando nele, não sabia o que fazer e disse para o filho se acalmar, pois tudo não passava de um sonho e a mineradora iria resolver vários problemas da cidade. Sem ser ouvido pelo pai, Tonho voltou para a praça e no meio do caminho viu o caminhão da WYK e uma aglomeração ainda maior próximo a ele. Quando chegou mais perto, Tonho viu que um garoto, de uns doze anos, estava imprensado nos meios da roda do caminhão. Ele não podia se mexer, deveria ficar quieto. Se fizesse algum movimento mais brusco, poderia ser cortado ao meio pelas rodas do caminhão. Tonho não acreditava no estava vendo. Como poderia um garoto estar debaixo das rodas do caminhão? Vários homens tentaram de todas as formas tirar o garoto debaixo da roda, mas não havia jeito. Quando sua mãe chegou ao local, ele já estava quase desfalecido e somente consegui abraçar sua mãe, que chorando, viu a brutal morte do filho esmagado pela roda de um caminhão.
Tonho já sabia que aquela indústria poderia trazer mais transtornos ao povoado e depois daquela cena, suas previsões pareciam que se tornariam verdade. Seria ele comido ou tragado por aquela mandíbula de aço? Louco e sem a razão, saiu gritando pela rua que o apocalipse estava se aproximando e que aquela mineradora só iria lhes trazer a desgraça. Foi à praça central, subiu num banco e começou a discursar contra WYK. O prefeito e o presidente da Câmara, que estavam próximos, perguntaram quem era o louco e logo já mandaram à polícia o prender porque estava difamando a mineradora e desacatando os que estavam ali presentes.
- Como podem me prender? O que estou fazendo de errado?
De repente, via um microfone e uma câmera de TV na sua frente, era o Carlos Carrasco, que usava um boné da WYK e logo falou:
- E aí seu marginal, vagabundo. O que você ta aprontando aí na praça? Ta mexendo com os patrões do dinheiro por quê?
Desesperado e vendo que estava entrando numa fria, Tonho não deu resposta alguma para o repórter Carlos Carrasco, foi algemado e levado à delegacia. No interrogatório, o delegado lhe perguntou o motivo de tanta agitação. Contou o sonho e o delegado, vendo que era um falsário e um impostor, lhe mandou passar três infelizes meses na detenção por apenas ter falado algo que pressentia e por se revoltar diante da morte de um rapaz, atropelado por um caminhão.
Estes três meses foram muito angustiantes para o nosso protagonista. No xilindró, convivia com uma infinidade de bandidos periculosos. Haviam ali sujeitos que roubavam, assaltavam, aplicavam golpes e uma outra infinidade de ações que representavam grande risco a sociedade. Mas o que fazer, se nem direito a palavra ele tinha e por demonstrar uma insatisfação fora cruelmente encarcerado e jogado no mais fundo “porão”. No período de detenção, Tonho ficou sabendo, através de seu pai, que o povoado se transformou numa cidade. Seu pai contava, que, com o início da construção da WYK, que estava pronta para funcionar, misteriosamente, as meninas começaram a engravidar. Não se sabia se era obra do espírito santo, ou se foram os operários que fizeram as moças criarem barriga, pois muitas nem sabiam quem eram os pais de seus filhos. Outra que lhe assustou, foi que muitos começaram a morrer nas explosões da mineradora. Eram operários que não sabiam manusear as máquinas.
Mas a pior mudança, com a instalação da indústria, foram às matas ao redor, que tiveram que ser derrubadas e usadas como combustível para aquecer os altos fornos da metalúrgica. O pai de Tonho, falava tristemente que a WYK iria usar mais árvores para que os fornos da mineradora pudessem trabalhar dia e noite e que os rios, vinham aos poucos perdendo seus peixes devido à poluição que se acumulava. E não fora somente aquele jovem que foi vítima daquele caminhão e os que se envolviam em acidentes de trabalho que perdiam as vidas. Com a chegada de mais pessoas a cidade, aumentaram os envolvimento em brigas ocasionadas pelas bebedeiras e os acidentes de carro e atropelamentos aumentaram significamente.
No entanto, havia uma notícia que iria lhe causar mais espanto e tristeza. Seu pai recebera uma carta do prefeito, em que obrigava as pessoas a saírem das suas casas, para dar lugar a WYK. A casa que Tonho nasceu e sempre morou iria ser desapropriada para que em seu lugar fossem feitos campos de escavação de minérios. Quando soube da noticia, seu pai adoecera e corria serio risco de falecer.
Angustiado e revoltado com a situação, Tonho então bolou um plano mirabolante: iria escapar da cadeia e junto com outros detentos, iria colocar uma bomba na WYK. Terrorismo? Ação extrema? Quixotismo? ou Valentia? Nenhum destas ações ou adjetivos se encaixariam em Tonho, mas, o amor ao pai e o ódio contra aqueles que queriam desapropriar sua casa era maior.
Numa noite de sábado, em que os guardas estavam mais entretidos em discutir os acontecimentos do Carlos Carrasco, Tonho, junto com Carlão Preto, Zé Caolho, Daltinho e Sugos armaram uma fuga espetacular da cadeia. Fizeram uma “tereza” (vários lençóis amarrados que formam uma espécie de corda) e a jogaram para fora do presídio. A fuga foi tão perfeita que logo alcançaram a rua sem serem notados pelos guardas. Como estava escuro, se embrenharam pelas ruas, em dupla, para não chamarem a atenção.
Tonho conheceu os comparas na cadeia e cada um tinha uma história diferente. Carlão Preto e Zé Caolho eram arrombadores de lojas comerciais e faziam geralmente os seus serviços à noite. Foram presos por um descuido de Zé Carlão, que pisou sem querem no alarme de uma loja de materiais de construção. Daltinho e Sugos já eram bandidos mais especializados no crime e eram muito conhecidos na região pela prática de assalto a bancos e a caixas eletrônicos de instituições públicas. Daltinho, o mais arrojado, via onde tinha caixas de banco que não tinham guardas armados e a noite, junto com uma quadrilha especializada, dava voz de assalto aos guardas, os rendiam e os amarravam. Depois despregavam os caixas eletrônicos, colocavam-nos numa van para logo em seguida sacar o dinheiro. Era um crime perfeito, pois não usava da violência, não davam tiros, disparos com armas de fogo e o mais importante, os assaltos sempre eram feitos a instituições públicas, como prefeituras e hospitais como alvo principal os bancos estatais. Porém, Daltinho foi preso após um assalto em que a van que conduzia o dinheiro, estava muito inclinada devido o peso do caixa eletrônico. Isso chamou a atenção dos policiais.
Após se dispersarem e marcar um encontro na fábrica da WYK, cada dupla teria uma função naquela noite: Carlão Preto e Zé Caolho iriam a loja de artefatos explosivos, arrombariam a loja e pegariam explosivos e dinamites necessários para um atentado a mineradora. Tonho ficaria de guarda em frente da loja, caso alguém chegar e dar um flagrante neles. A outra dupla, Daltinho e Sugos iriam arrumar uma van para que os explosivos fossem transportados.
A primeira dupla e Tonho logo foram a uma loja de materiais explosivos e arrumaram algumas dinamites, pólvora, nitroglicerina e cordas para que o plano desse certo. Não encontraram dificuldades, porque Daltinho e Sugos já os esperavam numa van em frente à loja. Carregada às mercadorias, seguiram todos para a WYK e Tonho teve a brilhante idéia de colocar os explosivos bem no fundo da mineradora, para que não fosse chamada a atenção dos guardas. Feito isso, levaram a van no funda da WYK, descarregaram os explosivos e montaram-nos ali mesmo. A quantidade de explosivos era tão grande, que derrubaria 1/3 da fábrica em poucos segundos. Ainda era madrugada e não havia ninguém na rua e na fábrica.
Feita a bomba, e programada para explodir em cinco minutos, o grupo radical entrou na van e aceleraram o mais que puderam para não deixarem suspeitas. Conforme mais aceleravam a van, mais aumentavam os batimentos cardíacos de Tonho. Sugos, que contava no relógio, começou a falar: 5, 4, 3, 2, 1, agora. Uma grande explosão se escutou e um imenso clarão iluminou aquela madrugada que seria inesquecível para todos. Emocionados e conscientes do que fizeram, rumaram novamente para a cadeia, a fim de voltar as suas celas e esperar a repercussão dia seguinte.
Tonho, que aguardava a liberdade estava dormindo quando é acordado pelo carcereiro, que o chamava para uma visita de seu pai, que surpreendentemente lhe contou à notícia que foi dada com exclusividade pelo Carlos Carrasco. “Assustado”, Tonho não sabia o que fazer e ficou quieto, quando chega novamente, a sua cela, o carcereiro, com a mensagem de que o juiz o havia mandado lhe libertar devido ao bom comportamento. Feliz com a novidade, Tonho saiu para rua com seu pai e notou que o povoado havia se transformado numa cidade e que ali não conseguiria mais viver devido à destruição que a WYK havia feito no seu antigo povoado.

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