sexta-feira, 18 de julho de 2008

Era mesmo um milagre???


Numa pequena cidade do interior, cuja principal fonte de renda era agricultura familiar, o povo simples mantinha vivos em seus corações o espírito nativo, as lendas e os costumes. Os “causos” deixavam todos abismados durante dias. Tia Nega, uma centenária que viveu na época da escravidão, com os cabelos mais brancos do que algodão, contava a maioria deles.
Os mais novos, sempre ávidos e curiosos, se reuniam perto dela para escutar suas histórias que deixavam todos com medo até de ir embora na escuridão. Era sempre assim, principalmente em noite de lua cheia.
Era um “fórfel” danado quando descobriam que ela tinha uma nova história para contar, muitas vezes inspiradas em cordéis que alguém trazia, como o de José Costa Leite: “A véia debaixo da cama e a perna cabeluda”. Esse cordel provocava tanto medo, que já vinha com a Oração da Pedra Cristalina, que além de proteger quem a lesse, também “fechava o corpo” contra as coisas ruins.
Quando Tia Nega contou a lenda de Quixambá, todos rezaram a Oração da Pedra Cristalina para ir embora.
A lenda era assim:
“No meio do cafezal por onde muitos de vocês passam para ir embora, mora, num buraco debaixo da terra, um monstro chamado Quixambá. Ele tem corpo de cachorro e a cara desfigurada de um homem. É tão feio que usa uma máscara feita com crânio humano. A fera astuta corre muito e ataca as pessoas pelas costas, mordendo seus calcanhares e arrancando a pele do pé. Depois da mordida, as pessoas não agüentam andar e o monstro despedaça suas vítimas para que sua matilha de filhotes se sirva.” Todos que estavam na roda se assustaram, mas Tia Nega continuou:
“Quixambá era um homem errante que vivia naquela região, escondido no meio dos cafezais. Dormia e comia com vira-latas e tomava leite no peito de cadela prenha. Disputava comida com um deles quando foi mordido e levado a um hospital para curar suas feridas. No entanto, fugiu de lá e ninguém mais o viu. Certo dia, um senhor que passava pelo meio do cafezal encontrou Quixambá agachado em meio às folhagens e lhe perguntou o que fazia ali. Repentinamente, sua feição mudou e com os caninos avantajados, Quixambá começou a latir. O senhor saiu correndo e, ao olhar para trás, percebeu que ele não era mais humano e, sim, uma fera com corpo de cachorro e face humana. Parecia o lobisomem.”
A lenda de Quixambá estava tão envolvente, que as pessoas se aproximaram para prestar mais atenção.
“Este senhor nunca mais viu Quixambá. No entanto, após este episódio, muitos animais de criação começaram a sumir. Em seus lugares, apareciam ossadas sem qualquer vestígio de carne. Assustados, os moradores da região desconfiaram de Quixambá e soltaram ratos no cafezal para localizar e capturar a besta fera. Numa destas armadilhas, escutaram um ratinho gritando e foram conferir. Lá estava, no meio do cafezal, Quixambá com o rosto cheio de sangue. Atiraram nele, desfigurando ainda mais seu já dilacerado rosto. Porém, tudo foi em vão. Quixambá era muito forte e, num salto, pulou na garganta de um deles. Numa mordida arrancou sua cabeça, grudou-a na boca e correu para dentro do cafezal. Ninguém mais teve coragem de caçá-lo. Dizem que ele usa justamente este crânio para esconder as marcas do seu rosto. Afirma-se também que Quixambá, apesar de ser uma fera, sabe que um dia foi homem e se amaldiçoa por ter comido com cães e virado um deles. Hoje, vaga pelos cafezais, plantações e matas da” região.”
Todos gelaram de medo. Joaquim, um rapaz que estava na roda, levantou-se e gritou:
— Olha o Quixambá!
Quem estava mais longe quase desmaiou com a brincadeira. Ninguém sabia se o monstro existia ou não, mas ficaram com receio de atravessar pelo cafezal.
Outra vez, tia Nega contou que leu, no jornal, que havia um homem parecido com Jesus, pois andava em cima das águas. Nesse dia, toda a criançada que brincava descalça pelas ruas foi até a casa dela escutar a história de umas pessoas que moravam perto de uma enorme represa abandonada, formada por um grande rio. A velha, com suas madeixas alvas como as nuvens e um olhar que brilhava e assombrava ao mesmo tempo, começou a contar:
“O povo estava angustiado, pois um barulho misterioso assombrava e irritava a todos, sem que ninguém soubesse o que era. Zé Pereira, curioso que só ele, escutava o turbilhão, que mexia as águas e causava um estrondo assustador, e queria ir até a represa ver quem fazia aquele barulho. Sua mãe, com medo do inesperado, falou para o filho se deitar.”
Antônio Pedregulho, seu pai, estava decidido a descobrir quem aterrorizava a comunidade. Levantou-se cedo e avisou que ia, com alguns homens, à represa, tamanha era a sua força de vontade e curiosidade. Eles caminharam dois quilômetros por uma picada aberta no mato, pedindo proteção divina. Lembraram que era para ser construída, naquela represa, uma grande hidrelétrica para fornecer energia e desenvolvimento para o local. Para que não derrubassem a mata nativa e alagassem as propriedades, os moradores se reuniram e pediram ao prefeito para não dar continuidade ao projeto, evitando assim um desastre ecológico. O prefeito, que só pensava em dinheiro e nem dava atenção à qualidade de vida da população, nem ligou. Revoltados, os moradores decidiram quebrar tudo e expulsar o prefeito e seus secretários.
Porém, naquele dia, o que havia na represa não eram homens com máquinas destruindo a natureza, e sim algo misterioso.
Eles chegaram ao lago e notaram algo estranho: o mato em volta estava mexido e derrubado por uma força sobrenatural. A área afetada era enorme, mas o que chamou mais a atenção foi o seu formato redondo com quatro marcas nos cantos.
Antônio Pedregulho se aproximou do lago, colocou uma vara na água e notou que ela era rasa. O pau afundava poucos centímetros. Todos concordaram que aquilo não era comum. Eles sempre iam pescar ali e sabiam que aquele trecho tinha pelo menos cinco metros de profundidade. Pedregulho resolveu entrar na água para se certificar que ali não tinha erosão ou sabotagem do prefeito.
— O pilantra jogou terra e pedra para ninguém pescar. Olha só o mato em volta todo derrubado. Ele mandou jogar muitos caminhões de pedra aqui.
Todos concordaram. Pedregulho tirou os sapatos e, sob o olhar aflito dos companheiros, entrou no lago.
— Se há pedras aqui, não as sinto embaixo dos meus pés — disse Pedregulho e começou a andar sobre as águas.
Todos avaliaram que aquilo era um milagre de verdade. Assustado, Pedregulho pediu para Zé Pereira chamar o pessoal da rádio comunitária. Como um foguete, Zé Pereira foi até a rádio e contou, ao vivo e em primeira mão, o que aconteceu. O radialista cético disse que só acreditava vendo. Chegando lá, viram Pedregulho andando por cima das águas num local que devia ter uns dez metros de profundidade. O radialista confirmou o furo. Ninguém acreditou. Equipes de televisão e jornal impresso correram para lá a fim de registrar o fato.
Quando a equipe de TV transmitiu ao vivo um caboclo andando na superfície das águas, todos passaram a acreditar que era um milagre. A partir daí, Pedregulho, um pacato cidadão, aparecia na TV como o Messias.
Estavam todos intrigados com a façanha de Pedregulho. Alguns afirmavam que ele era um farsante, pois devia ter colocado tábuas no lago e andado em cima delas.“
Um garoto que estava aos pés de Tia Nega perguntou se aquilo era verdade. Com o semblante sério, disse que sim, pois leu tudo no jornal. Ela então continuou a narrativa:
“Depois de virar celebridade momentânea, Pedregulho foi para casa. No entanto, naquela noite, o barulho voltou.”
De manhã, Pedregulho ligou para a rádio e mandou anunciar que quem duvidasse poderia ir até a beira da represa, ao meio dia, que ele mostraria a verdade. Muitos se aglomeraram em volta da represa e Pedregulho, de novo, entrou no lago sem afundar, convidando-os a entrar e comprovar a verdade.
Um morador da cidade, Pedro das Rocas, disse que, se Pedregulho era macho o bastante para entrar na água e não afundar, ele também era, e pulou no lago. Não afundou. Os mais corajosos fizeram o mesmo, eram mais de 50 homens andando sobre as águas. Zé Pereira percebeu que, no fundo do lago, havia uma plataforma. Por mais que tentasse, uma força gravitacional o impedia de afundar.
O lugar virou uma atração com direito a cachorro-quente, sorveteiro e pipoqueiro. De repente, o barulho ensurdecedor que apavorara a cidade durante várias noites, recomeçou. Zé Pereira, que estava na borda do lago, sentiu uma vibração e algo se movendo embaixo da água. Num movimento rápido, saiu correndo, como todos que estavam ali.
O barulho se tornou mais intenso, invadindo todo o ambiente. Como num filme de ficção científica, a água começou a borbulhar e saiu do lago um grande disco voador, captado pelas lentes dos fotógrafos. Zé Pereira não podia afundar devido à força magnética exercida pela nave.
O disco, que surpreendeu a todos, saiu do lago e subiu aos céus.
Absurdo ou verdade?
No outro dia, todos os jornais estampavam, na capa, a foto de Pedregulho andando pelas águas e, ao lado, a do disco voador.
A manchete anunciava:

DESVENDADO MISTÉRIO DO LAGO:
OVNI OPERAVA MILAGRE.

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