Com dificuldade para comprarem um terreno, construírem suas casa e pagarem as prestações, 20 famílias que vagavam pelas ruas em barracos de lona resolveram invadir uma propriedade que fazia parte dum sítio. O dono das terras foi indenizado pelo estado, o que tornou a invasão um sucesso, atraindo para lá outras pessoas que também não tinham para onde ir.
Romualdo, sua mãe e irmã foram seus primeiros moradores. De braço firme e forte, trabalhava como servente de pedreiro e gostava muito do que fazia. Orgulhava-se de ter construído, com as próprias mãos, a casa de dois quartos, sala conjugada com cozinha e banheiro, onde morava.
Sensato e do tipo que não mede esforços nem economiza força física nos serviços braçais, era bom em bater massa de concreto, carregar tijolos, quebrar pisos e parede. Quando aparecia uma oportunidade para ganhar dinheiro que lá estava ele com sua pá, marreta ou colher de pedreiro.
Hoje o Buraco Fundo — chamado assim por estar localizada em uma depressão próxima a um rio — tem mais de sete mil habitantes ou 1.200 famílias, distribuídas em casas de madeira, alvenaria, lona ou madeirite.
Os problemas desse lugar aumentaram na mesma proporção de seu crescimento. A favela, que abrigava miseráveis e desempregados, se transformou num local propício à criminalidade. O Buraco Fundo, habitada por famílias humildes, virou um caos devido aos assaltos, roubos e homicídios. Lá se parecia em muito com o inferno.
Romualdo tinha na memória o dia que um rapaz entrou na casa dum morador, desligou a TV, colocou-a debaixo do braço e saiu como se nada estivesse acontecendo. Os roubos eram feitos assim, à luz do dia. A lei era imposta pelo crime e pelo medo.
Lá era tão perigoso, que os caminhões que abasteciam o comércio dificilmente entravam no bairro. Os marginais ficavam escondidos esperando, por exemplo, pelos entregadores de leite. Depois da ação, não sobrava leite nem dinheiro. Para uma encomenda chegar a seu destino, a polícia precisava ser avisada do horário da entrega a fim de escoltar o caminhão.
No Buraco Fundo, as modalidades de crime não se restringiam a assaltos e furtos a casas e estabelecimentos comerciais. Havia também os que atacavam os coletivos. O estado de calamidade chegou a tal ponto que os ônibus pararam de entrar no Buraco Fundo e os seus moradores eram obrigados a caminhar mais de um quilômetro para embarcar.
Não suportando mais essa situação, a população se uniu para eliminar a violência. Organizaram-se secretamente e decidiram que a ética e a moral seriam os principais lemas na favela. Não tolerariam mais as infrações que tanto prejudicavam os que se sacrificavam para comprar seus bens. Por unanimidade, a assembléia decidiu puni-los com a expulsão. Caso não saíssem, suas casas seriam incendiadas com tudo dentro. Isso serviria para que os “pilantras” parassem de amedrontar os moradores e sentissem na pele o horror proporcionado por essas ações violentas. A punição era severa, porque o sofrimento imposto pelos bandidos não era pequeno. Assim, eles saberiam que um deslize ou escorregão poderia lhes custar caro. Seria mentira se falássemos que essas medidas radicais aconteceram da noite para o dia. O combate ao crime iniciou-se com a revolta da comunidade que denunciou e identificou os criminosos. Como resultado, muitos infratores se mudaram do Buraco Fundo ou foram presos. Assim, o cidadão, pai de família, podia ir trabalhar sossegado. Ele sabia que, ao voltar, encontraria tudo como deixou. Apesar da violência ter caído a quase zero, haviam aqueles que, expulsos, guardavam ódio da associação.
Quanto a Romualdo, este sonhava em ser engenheiro civil, daqueles que constroem prédios, mansões, armazéns e barracões. Sua vontade era imensa. Quando não estava nas assembléias ou se dedicando a alguma obra, aproveitava para ler tudo o que encontrava. Adorava matemática, português, história, geografia, literatura e, principalmente, Ciências Sociais. Seu engajamento na associação dos moradores mostrava o seu interesse pelos problemas sociais, como exclusão, fome, miséria, criminalidade, ou seja, pelos distúrbios causados pelo capitalismo.
Nas reuniões, sempre tinha uma opinião a dar quando o assunto era os problemas da comunidade. Parecia um professor ou um orador expondo suas idéias a uma interessada platéia. Um dos temas que mais abordava era a exclusão social. Ao ler os livros de sociologia que ganhou dum estudante, viu-se na situação retratada pelo autor: um ser excluído socialmente e, devido ao sistema capitalista, obrigado a ganhar pouco para que a inflação não aumentasse. Revoltava-se e os ataques ao capitalismo ficavam claros em seus discursos.
A platéia se envolvia logo com suas palavras, pois aqueles “personagens excluídos” eram eles e aquela situação, a sua realidade.
Para os que haviam morado na zona rural, Romualdo explicava de maneira inflamada que o capitalismo era o responsável por colocá-los à margem da sociedade e levá-los para as favelas.
— O modo de produção capitalista covardemente tirou o trabalhador do campo. Eles nos degradaram e mudaram nossos costumes. Muitos de nós fomos obrigados a trabalhar somente pela comida — discursava Romualdo.
Com a retórica de um político, emocionava seus ouvintes. Era só tocar na palavra capitalismo que os olhos dos que estavam na platéia brilhavam. Quando dizia que muitos morreram pela ambição e crueldade desse sistema, eles se transformavam. Sua inspiração era Marx.
— Devemos destruir quem vive à sombra do capitalismo para que o homem possa viver em harmonia.
Era assim em todas as assembléias. Ele tinha a convicção de que havia formas de melhorar as condições sociais dos miseráveis.
O Buraco Fundo deixou de ser um local perigoso. Agora, reinavam os debates e as discussões políticas.
Com o tempo, a violência quase desapareceu e o povo estava mais interessado em resolver outros problemas. Romualdo percebeu que deveria ser menos teórico e idealista e partir para a prática. Tinha que propor algo novo para aquela população pobre, mas feliz, que sofria com a miséria e tentava de todas as maneiras se enganar. O que fazer? Com os amigos, passou a pensar em soluções.
Ele sabia que, se houvesse escolas no bairro, elas ajudariam a resgatar os jovens. Eles se qualificariam e, no futuro, não estariam na fila dos desempregados ou mortos em alguma “quebrada”.
— É o que falta — deduzia.
Da mesma maneira que se organizaram para eliminar os problemas de furto, poderiam agora trazer educação, posto de saúde e creche à favela. Romualdo, que não largava a colher de pedreiro, discutia, nas obras, alternativas para mudar de uma vez por todas a cara do Buraco Fundo.
— Quem sabe, poderíamos começar mudando o nome do bairro.
Foi assim até a tarde daquele domingo sangrento.
Romualdo e dois amigos estavam no bar conversando sobre o sonho da escola, quando Santos, um marginal que teve a casa incendiada e nutria um ódio mortal por Romualdo, ficou sabendo, que o mesmo estava reunido com alguns de seus algozes. Não pensou duas vezes e com muita ira, carregou dois revólveres 38 e montou em sua moto para dar um desfecho na sua maldição. Encostou a mesma na calçada, chegou de mansinho e cumprimentou Romualdo que, surpreso, apenas o olhou com reprovação. Foi o que bastou. Aquela recepção negativa fustigou Santos. Ele imediatamente perguntou a Romualdo, porque ele lhe olhava daquela maneira.
- Já disse que não era para você aparecer aqui no Buraco Fundo. Você é um bandido maldito que teve como lição sua casa incendiada. – Disse Romualdo.
Apenas estas palavras serviram para que o ódio se transformasse em horror. Como num filme de wester, Santos sacou os dois revólveres e com uma arma em cada mão deu um tiro fulminante na cabeça dum amigo de Romualdo e com a outra arma, na mão esquerda, não teve dó nem piedade e acertou o pescoço do outro amigo de Romualdo. Os dois caíram no chão sem vida. Com o barulho ensurdecedor, Romualdo se assustou e tentou em vão salvar a sua vida correndo pela rua. Na sua cabeça, tinha a visão recente dos dois corpos ensangüentados caindo já sem vida alguma. Isso durou pouco. Santos, como um pistoleiro, de longe acertou as pernas de Romualdo, que já sem forças para correr, levou mais um tiro nas costas. Santos então se aproximou e olhou bem fundo nos olhos daquele que um dia foi seu algoz. Sabia que somente a vingança poderia lavar a sua honra e, fazia aquilo por não ter ganhado o perdão. Então, com a platéia toda a assistir aquele festival de horrores, Santos descarregou as duas armas, desferindo todos os tiros contra a irreconhecível face de Romualdo. Santos fez o sinal da cruz, benzendo-se para que o espírito de Romualdo não o atormentasse. Acabava ali o martírio de Romualdo
O sonho de Romualdo de transformar o Buraco Fundo num lugar com escola e sem violência, acabou-se num acerto de contas. Ele foi vítima dum sistema cruel onde prevalecia a lei do “dente por dente e olho por olho”.
A tristeza causada pela morte de Romualdo foi grande, mesmo assim, os moradores não se intimidaram. Os antigos companheiros sempre lembram do amigo idealista que sonhava em trazer a paz para a favela.
Hoje, Santos paga pelo crime bárbaro que cometeu e, no Buraco Fundo, a esperança não acabou. O lugar, que antes era conhecido pelo crime e pela violência, mudou até de nome, agora se chama Jardim Romualdo.
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