“Por que com o tempo não volto os meus olhos para o
que é novo?” Esta frase de William Shakespeare nos faz pensar que historicamente
a cultura se coloca na vanguarda dos acontecimentos sociais e atua como
referência de novidade artística e na defesa das minorias. No Brasil, a cultura
também é depositário da memória de personagens e fatos ignorados pela história
oficial. Ela ganha relevância quando tratamos da intolerância religiosa.
Em
nosso país, o advento da República separou religião e Estado, possibilitando
maior liberdade de culto e manifestações que envolvem cultura e religiosidade.
Apesar do avanço, a intolerância permaneceu como resquício do período de subjulgamento
a escravidão, exploração e vidas sem história. Cidadãos sem cidadania, sem
direito ao voto e a educação. E como pano de fundo, o preconceito e a
intolerância.
A cultura brasileira nasce da força e
da identificação de seus criadores com a terra tropical: mitos, verdades e
enfrentamentos. Por isso, a cultura se manifesta como defesa, descobrimento de
problemas e soluções ao país.
O
romance Tenda dos milagres (Jorge Amado) foca na intolerância racial e
religiosa de famílias tradicionais que desconhecem sua origem popular e negra.
O texto aborda o cotidiano de lutas e derrotas do povo que sofrem por conta do
preconceito de homens poderosos da política e da policia, cujas conseqüências
acompanham gerações e aos que não concordam com os abusos. O final da história
é surpreendente: obriga os dois lados a repensar a vida e desenvolver o perdão
e a boa convivência.
Obras
do Romantismo Brasileiro, como O Guarani (José de Alencar); Escrava Isaura
(Bernardo Guimarães) e o poema O Navio Negreiro (Castro Alves) embora não
tenham o foco na intolerância religiosa, mostram como ela afeta a vida social e
a integridade física do perseguidos. Negros e indígenas se vêem sem lei que os
protejam e as voltas com poderosos que são a própria lei.
Do incompreendido culto dos índios
brasileiros, do candomblé, umbanda e a visão do cristianismo humanista e social
surgiram obras primas e gêneros musicais essenciais para o Brasil, como samba,
jongo, ciranda e cantigas que dão dimensão única à canção nacional. Dorival
Caymmi, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Benjor, Raul Seixas, Chico César e
Cazuza desafiaram convenções em músicas que desbravaram mistérios religiosos e
intolerâncias em contexto afro, esotérico, budista e no hinduísmo.
Na TV, novelas também
exploraram em releituras e textos inéditos a intolerância religiosa mostrando
que os conflitos vêm do desconhecimento sobre o outro e que todas as religiões
pregam a paz e a comunhão dos homens em amplitude universal. É o caso de A
viagem (Ivani Ribeiro/1975); Sinhá Moça (Benedito Ruy Barbosa/1986); Pacto de
sangue (Regina Braga/1989) e Porto dos milagres (Aguinaldo Silva/2001, baseado
em Jorge Amado).
Recentemente
o cinema trouxe a história de Besouro, capoeirista que vive aventuras e
enfrenta perseguições para manter viva a cultura dos quilombos, já que música,
dança e religião sofriam os mesmos revezes e tudo era proibido. Nos anos 60, o
filme “O Pagador de promessas”, de Anselmo Duarte e baseado em Dias Gomes, trazia
o drama de Zé do Burro e sua dura missão de agradecer o milagre recebido e não
poder entrar na igreja, pois seu sincretismo foi duramente combatido.
Assim,
a cultura provoca debates e reflexões sobre os males causados pela intolerância
religiosa e a necessidade de um pensamento mais próximo dos valores humanos.
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