Um bom exercício para a compreensão de alguns aspectos das mazelas da TV brasileira hoje é imaginar como serão os programas de humor no dia em que o brasileiro deixar de achar graça no preconceito. São poucas as exceções – se elas realmente existem –, entre os humorísticos, de espaços que não sejam apelativos e não abusem do uso de piadas preconceituosas e abusivas, sejam de cunho racial, sexual ou social. O trocadilho, o duplo sentido, virou sinônimo de humor. O gênero que ajudou a construir e consolidar a televisão no país virou samba de uma nota só. Então, gays, pobres, negros ou caipiras são inestimáveis fontes desse tipo de conteúdo.
Em 2008, o programa Custe O Que Custar (CQC), da TV Bandeirantes, foi celebrado como uma alternativa no gênero humorísitico pela sofisticação do humor, conotação social e acidez na crítica política. Alguns de seus repórteres chegaram a ser barrados no Congresso Nacional pelos incômodos que suas perguntas causaram aos deputados e senadores da casa. Foi a boa notícia de 2008. Mas eis que, neste 2009, na segunda temporada da atração, o CQC mostra tendência a cair na vala comum, da repetição, da estereotipagem e da piada pronta, ainda que se revele bem acima do global Toma Lá Dá Cá, pior ainda neste seu segundo ano de exibição, antecipando sua saída da programação para breve.
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
Velhos estereótipos
Há uma vala comum que inclui o pior do humor no Brasil, onde despontam Zorra Total e Casseta e Planeta, ambos da Rede Globo, Pânico na TV, da RedeTV!, e A Praça é Nossa, do SBT. Por que estão eles entre os piores? Acima de tudo, devido à linguagem, tanto visual como verbal, que é sempre a mesma. As piadas se repetem e com isso o público ri cada vez menos. A oferta escassa de humorísticos e o círculo vicioso da pouca qualidade são fatores que têm perenizado no ar muitas das atrações referidas, sejam elas de nível constrangedor ou não. Depois, transparece que não é possível fazer humor sem ser apelativo. Usar palavras de baixo calão, quando não palavrões, virou algo natural, sem nenhum tipo de cuidado por parte dos roteiristas, editores e atores-apresentadores (estes últimos, em seus improvisos).
Mal humor (não confundir com mau humor) à parte, a xenofobia e a homofobia estão longe de ser um problema vencido no Brasil. Como o imaginário da população se constitui majoritariamente do que ela vê na tela, as perspectivas para que sejam vencidos estes problemas parecem deveras longe do alcance da população. É o reflexo de uma sociedade onde, recentemente, uma pesquisa apontou que 45% dos brasileiros reconhecem ter preconceito contra homossexuais. Igualmente é o sintoma de uma sociedade que precisa de cotas para negros na universidade para amenizar uma dívida histórica. Acima de tudo, expressa uma sociedade que ainda não sabe conviver com as diferenças, fenômeno no qual a TV tem grande parcela de responsabilidade, desfilando velhos estereótipos da civilização atrasada, como o negro marginal, o gay afeminado, o caipira ignorante e os padrões de beleza de sempre, só para citar alguns. É um problema midiático-social, pela produção viciada e pela recepção legitimadora dessa forma de fazer televisão.
Mal humor (não confundir com mau humor) à parte, a xenofobia e a homofobia estão longe de ser um problema vencido no Brasil. Como o imaginário da população se constitui majoritariamente do que ela vê na tela, as perspectivas para que sejam vencidos estes problemas parecem deveras longe do alcance da população. É o reflexo de uma sociedade onde, recentemente, uma pesquisa apontou que 45% dos brasileiros reconhecem ter preconceito contra homossexuais. Igualmente é o sintoma de uma sociedade que precisa de cotas para negros na universidade para amenizar uma dívida histórica. Acima de tudo, expressa uma sociedade que ainda não sabe conviver com as diferenças, fenômeno no qual a TV tem grande parcela de responsabilidade, desfilando velhos estereótipos da civilização atrasada, como o negro marginal, o gay afeminado, o caipira ignorante e os padrões de beleza de sempre, só para citar alguns. É um problema midiático-social, pela produção viciada e pela recepção legitimadora dessa forma de fazer televisão.
A TV e o capitalismo como religião
Reproduzido do Brasil de Fato, 1/9/2009, título original "Telecatch nos templos do capitalismo como religião"
O Ministério Público acusou dirigentes da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) de aplicarem recursos oriundos das doações de fiéis na compra de bens registrados em nome desses mesmos dirigentes. A denúncia desencadeou mais uma "guerra santa" entre Rede Globo e Rede Record. Em 1995 vimos um primeiro capítulo dessa cruzada. Na ocasião, um pastor desferiu um pontapé numa estátua de Nossa Senhora da Aparecida. Foi a senha para a comoção nacional. As mesmas denúncias de desvios das contribuições dos fiéis circularam, os pastores choraram ao vivo e alegaram perseguição religiosa.
A primeira questão que nos assalta é fruto da perplexidade. Como a sociedade brasileira permitiu que as organizações Globo e Universal, desmesuradas até nos nomes, penetrassem tão profundamente na nossa vida cotidiana?
A segunda indagação, mais complexa e ligada à primeira, tenta entender o que move, ou comove essa multidão, plugada nessa espécie de universo paralelo que, em ambos os casos, assume uma dimensão religiosa, sagrada, elegendo entidades beatificadas pela audiência global de um lado, ou atraindo incautos para as "correntes dos empresários" de outro?
Embora ambos os conglomerados atuem no mesmo mercado da capitalização dos corpos, das almas e do imaginário, existem diferenças importantes nos dispositivos de captura, que talvez ajudem a explicar as recentes cenas de telecatch (luta livre) entre as redes – o último round envolveu a compra do histórico documentário Muito Além do Cidadão Kane (1993) de Simon Hartog pela emissora do bispo Edir Macedo.
A Globo sempre preferiu utilizar uma espécie de anulação das diferença culturais, através de um arsenal estético homogêneo, compacto, plastificado, auto-referente, marcado por uma língua única.
Já os pentecostais e neo-pentecostais, investiram em outra abordagem. Na São Paulo do início dos anos 1980, os migrantes que chegavam de ônibus no antigo terminal rodoviário do Glicério eram recebidos por obreiros da "Igreja Pentecostal Deus é Amor", cujo público alvo era (e ainda é) composto pelas classes C e D.
O voluntário da igreja fazia uma abordagem meticulosa e milhares de recém-chegados eram cooptados, até pela falta de perspectivas mais alentadoras. Em seu templo principal na Baixada do Glicério, que hoje assumiu proporções épicas, havia um painel luminoso que piscava o nome das emissoras de rádio que transmitiam ao vivo as homilias do pastor Davi Miranda, fundador da igreja (que conta hoje com 520 templos, só na cidade de São Paulo).
Guardadas as devidas proporções, foi o que aconteceu com as demais igrejas neo-pentecostais, que diversificariam seus públicos e ampliariam a estrutura deste "franchising da fé", sempre através da mesma prática da ocupação dos vazios existenciais, das carências crônicas e aproveitando a imensa falta de espaços públicos para a socialização básica.
Entretanto, a partir do surgimento da Igreja Universal, passamos para um outro patamar. Seus empresários perceberam para onde o vento do espírito do capitalismo estava soprando. Enquanto a Globo insistia em rituais como o "show da vida", os neo-pentecostais jogavam pesado no "show da fé".
O Ministério Público acusou dirigentes da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) de aplicarem recursos oriundos das doações de fiéis na compra de bens registrados em nome desses mesmos dirigentes. A denúncia desencadeou mais uma "guerra santa" entre Rede Globo e Rede Record. Em 1995 vimos um primeiro capítulo dessa cruzada. Na ocasião, um pastor desferiu um pontapé numa estátua de Nossa Senhora da Aparecida. Foi a senha para a comoção nacional. As mesmas denúncias de desvios das contribuições dos fiéis circularam, os pastores choraram ao vivo e alegaram perseguição religiosa.
A primeira questão que nos assalta é fruto da perplexidade. Como a sociedade brasileira permitiu que as organizações Globo e Universal, desmesuradas até nos nomes, penetrassem tão profundamente na nossa vida cotidiana?
A segunda indagação, mais complexa e ligada à primeira, tenta entender o que move, ou comove essa multidão, plugada nessa espécie de universo paralelo que, em ambos os casos, assume uma dimensão religiosa, sagrada, elegendo entidades beatificadas pela audiência global de um lado, ou atraindo incautos para as "correntes dos empresários" de outro?
Embora ambos os conglomerados atuem no mesmo mercado da capitalização dos corpos, das almas e do imaginário, existem diferenças importantes nos dispositivos de captura, que talvez ajudem a explicar as recentes cenas de telecatch (luta livre) entre as redes – o último round envolveu a compra do histórico documentário Muito Além do Cidadão Kane (1993) de Simon Hartog pela emissora do bispo Edir Macedo.
A Globo sempre preferiu utilizar uma espécie de anulação das diferença culturais, através de um arsenal estético homogêneo, compacto, plastificado, auto-referente, marcado por uma língua única.
Já os pentecostais e neo-pentecostais, investiram em outra abordagem. Na São Paulo do início dos anos 1980, os migrantes que chegavam de ônibus no antigo terminal rodoviário do Glicério eram recebidos por obreiros da "Igreja Pentecostal Deus é Amor", cujo público alvo era (e ainda é) composto pelas classes C e D.
O voluntário da igreja fazia uma abordagem meticulosa e milhares de recém-chegados eram cooptados, até pela falta de perspectivas mais alentadoras. Em seu templo principal na Baixada do Glicério, que hoje assumiu proporções épicas, havia um painel luminoso que piscava o nome das emissoras de rádio que transmitiam ao vivo as homilias do pastor Davi Miranda, fundador da igreja (que conta hoje com 520 templos, só na cidade de São Paulo).
Guardadas as devidas proporções, foi o que aconteceu com as demais igrejas neo-pentecostais, que diversificariam seus públicos e ampliariam a estrutura deste "franchising da fé", sempre através da mesma prática da ocupação dos vazios existenciais, das carências crônicas e aproveitando a imensa falta de espaços públicos para a socialização básica.
Entretanto, a partir do surgimento da Igreja Universal, passamos para um outro patamar. Seus empresários perceberam para onde o vento do espírito do capitalismo estava soprando. Enquanto a Globo insistia em rituais como o "show da vida", os neo-pentecostais jogavam pesado no "show da fé".
Eu vi um Brasil na TV
Os modelos global e universal foram responsáveis, em fases diferentes, pela introdução no Brasil do capitalismo enquanto valor de exposição. Além do valor de uso e do valor de troca, a briga entre os gigantes evidencia entre nós este terceiro elemento típico da sociedade da informação e do espetáculo, o valor de exposição, sem o qual é impossível entender o arrastão que o sistema comunicacional monopolista operou no país.
Enquanto a Globo fisgava o espectador pelo seu "padrão de qualidade", a partir do qual a ascensão social era um valor mostrado sempre indiretamente através das novelas, a Universal/Record capturava o fiel/telespectador pelo dispositivo imediato do culto ao dinheiro, sem intermediários e sem rodeios. Em ambos os casos convergimos para o que Walter Benjamin chamou de capitalismo como fenômeno essencialmente religioso.
A Rede Globo representou a fase de acumulação primitiva do capital de exposição, principalmente nos anos 1970 e 1980. O filme Bye Bye Brasil (1979), de Cacá Diegues, mostrou muito bem como a televisão operou essa integração nacional, deslocando o país para uma dimensão paralela da realidade. Só que a partir dos 1990, quando o modelo das grandes redes de televisão começou a se desarticular, inclusive pelo impacto da internet, entram em cena os magnatas neo-pentecostais tupiniquins, complicando ainda mais as intenções de manutenção da hegemonia global.
Walter Benjamin dizia que "o capitalismo é uma religião puramente cultural. Nada nele tem significado que não esteja em relação imediata com o culto, já que ele não tem dogma específico nem teologia". É exatamente nesse sentido que se configuraram as pretensões comunciacionais da IURD, estabelecendo entre nós a fase de consolidação do capitalismo como religião.
Enquanto a Globo fisgava o espectador pelo seu "padrão de qualidade", a partir do qual a ascensão social era um valor mostrado sempre indiretamente através das novelas, a Universal/Record capturava o fiel/telespectador pelo dispositivo imediato do culto ao dinheiro, sem intermediários e sem rodeios. Em ambos os casos convergimos para o que Walter Benjamin chamou de capitalismo como fenômeno essencialmente religioso.
A Rede Globo representou a fase de acumulação primitiva do capital de exposição, principalmente nos anos 1970 e 1980. O filme Bye Bye Brasil (1979), de Cacá Diegues, mostrou muito bem como a televisão operou essa integração nacional, deslocando o país para uma dimensão paralela da realidade. Só que a partir dos 1990, quando o modelo das grandes redes de televisão começou a se desarticular, inclusive pelo impacto da internet, entram em cena os magnatas neo-pentecostais tupiniquins, complicando ainda mais as intenções de manutenção da hegemonia global.
Walter Benjamin dizia que "o capitalismo é uma religião puramente cultural. Nada nele tem significado que não esteja em relação imediata com o culto, já que ele não tem dogma específico nem teologia". É exatamente nesse sentido que se configuraram as pretensões comunciacionais da IURD, estabelecendo entre nós a fase de consolidação do capitalismo como religião.
Um modelo próprio
Ainda que o modelo do tele-evangelismo estadunidense tenha servido de inspiração inicial, o que se implantou por aqui não foi o estilo da ética protestante e o espírito capitalista, mas um modelo próprio, muito mais avançado e arrojado, que hoje é exportado para o mundo inteiro. Antes nos vangloriávamos de saber que a novela Escrava Isaura fora dublada em chinês. Agora temos o kit Universal completo para exportação, composto de templos neoclássicos, que já vêm com seus respectivos pastores expulsadores de demônios.
No Brasil, mais do que em qualquer outro lugar do mundo, esta fase do capitalismo como religião encontrou na televisão a sua dimensão, digamos, mais literal. E o arrastão continuou, porque o valor de exposição do capitalismo como religião opera por um mecanismo perverso de separação. Subtrai coisas, lugares, pessoas, culturas, valores, hábitos ao uso comum e as transfere para uma esfera separada, a da pura exposição (espetáculo).
Enquanto a Globo continua tentando se desvencilhar do passado, sem no entanto mudar a ética e a estética do seu discurso visual, a Universal, apesar de clonar o modelo de jornalismo e a teledramaturgia da Globo, já entendeu que entramos numa era do consumidor-produtor. A própria emissora da igreja, a TV Record, foi comprada com o dinheiro dos fiéis. São eles mesmos que atuam em muitos programas, principalmente através dos testemunhos, e assim a roda da fortuna gira, tendo como matéria-prima os próprios telespectadores, capital humano que mantém a estrutura funcionando.
No livro A Igreja Universal e seus demônios, o antropólogo Ronaldo de Andrade conclui, em relação à Universal, "que a debilidade dos vínculos com uma tradição religiosa e a simplicidade do discurso garantiram-lhe maior aderência a um mundo em mudança. Enquanto o catolicismo debatia-se teologicamente sobre como realizar uma missa pela televisão, a Igreja Universal, valendo-se cada vez mais da linguagem televisiva, penetrou nas casas, transmitindo, via satélite, suas mensagens, curas e bênçãos. Sustentando exorcismos e milagres sobre uma estrutura comercial eficiente, a Igreja Universal dilui noções como o arcaico e o moderno".
Talvez seja doloroso, mas é necessário constatar que, neste contexto, a Globo é a modernidade e a Universal é a pós-modernidade do capitalismo como religião.
No Brasil, mais do que em qualquer outro lugar do mundo, esta fase do capitalismo como religião encontrou na televisão a sua dimensão, digamos, mais literal. E o arrastão continuou, porque o valor de exposição do capitalismo como religião opera por um mecanismo perverso de separação. Subtrai coisas, lugares, pessoas, culturas, valores, hábitos ao uso comum e as transfere para uma esfera separada, a da pura exposição (espetáculo).
Enquanto a Globo continua tentando se desvencilhar do passado, sem no entanto mudar a ética e a estética do seu discurso visual, a Universal, apesar de clonar o modelo de jornalismo e a teledramaturgia da Globo, já entendeu que entramos numa era do consumidor-produtor. A própria emissora da igreja, a TV Record, foi comprada com o dinheiro dos fiéis. São eles mesmos que atuam em muitos programas, principalmente através dos testemunhos, e assim a roda da fortuna gira, tendo como matéria-prima os próprios telespectadores, capital humano que mantém a estrutura funcionando.
No livro A Igreja Universal e seus demônios, o antropólogo Ronaldo de Andrade conclui, em relação à Universal, "que a debilidade dos vínculos com uma tradição religiosa e a simplicidade do discurso garantiram-lhe maior aderência a um mundo em mudança. Enquanto o catolicismo debatia-se teologicamente sobre como realizar uma missa pela televisão, a Igreja Universal, valendo-se cada vez mais da linguagem televisiva, penetrou nas casas, transmitindo, via satélite, suas mensagens, curas e bênçãos. Sustentando exorcismos e milagres sobre uma estrutura comercial eficiente, a Igreja Universal dilui noções como o arcaico e o moderno".
Talvez seja doloroso, mas é necessário constatar que, neste contexto, a Globo é a modernidade e a Universal é a pós-modernidade do capitalismo como religião.
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